#4: no rest for the wicked

technogender
5 min readSep 5, 2021

Algum lugar do Norte de Minas, cerca de cinco anos atrás. Estou sentada em frente ao Centro de Ciências Humanas. Ao meu lado, uma sapatão e melhor amiga à época, e uma bicha. Eu não conseguiria explicar o que estava acontecendo em minha cabeça ali, mas eu me apresentava enquanto bissexual e não-conformista de gênero. Encaro as minhas amizades e, sem um contexto, pergunto: Vocês não acham que precisamos de um espaço para falar sobre essas… questões, militância, no campus?

Essas palavras, as minhas primeiras para todos os efeitos, hoje estão guardadas no arquivo-vivo que é o meu corpo como o momento em que as nossas micropolíticas queer romperam o solo considerado infértil dos Sertões. A bicha tira uma agenda pessoal da mochila; sabia de quais questões eu estava falando. Erguendo o indicador como gesto para que esperássemos um segundo, e sem falar nada, começa a folhear as páginas em busca de algo. O que achou foi um panfleto de um projeto de extensão em Homocultura que era ativo na universidade anos atrás. Então isso já existiu... Embora essa afirmação precise ser feita com muito cuidado, para não cairmos na armadilha do ímpeto essencialista de rastrear na História da Civilização Humana exemplos de um ancestralidade homossexual, não deixa de ser uma verdade dizer que: isso sempre existiu e em todo lugar.

No dia seguinte, visitamos o arquivo de monografias do curso de Ciências Sociais em busca de uma etnografia sobre a “população LGBT” daqui. Não faço ideia agora, enquanto estilizo e contesto essas memórias, de onde posso afirmar que essa informação chegou até nós. O fato é que existia mesmo a monografia. Lemos, coletivamente, a história dos territórios homossexuais da cidade. O grupo apresentado no panfleto era parte dessa história. Procuramos saber o que aconteceu com essas pessoas, e fomos informadas de que o grupo chegou ao seu fim quando um dos três professores responsáveis pela coordenação do mesmo se desligou do campus. Mas não era o fim — esse legado chegou a nossas mãos.

Devorando a homocultura que encontramos ali, empoeirada, o próximo passo era criar um produto dessa digestão, e que fosse mais-que-homo. Lembro de sair, no sol quente — o sol é sempre tão quente aqui — , andando de prédio em prédio do campus, acompanhada por Ana, Luiz e uma folha de caderno onde iríamos anotar os nomes de todas as bichas, sapas e travas do campus. Lembro disso com um ar cômico e costumo pensar que era uma Iniciativa Avengers Queer.

Quarenta nomes na lista. Quarenta corpos que foram quase agressivamente abordados por nós com a interpelação de você é gay? lésbica? bissexual? trans? você quer fazer parte disso? Naquela época, não achamos outra estratégia que não fosse, sem querer, causar um segundo coming out em massa de minorias sexuais que frequentavam a universidade. Talvez podíamos ter evitado a exigência de confissão e pertencimento à uma identidade, e talvez se não estivéssemos contando com um gaydar, sempre arbitrariamente calibrado, teríamos encontrado mais gente. Talvez, mas vejam os quarenta itens com números de celular.

Algum tempo depois não existiam mais quarenta nomes. Meia dúzia. A mesma pessoa que fazia a proposta de um evento tinha que fazer a arte de divulgação, implorar para usar a impressora de algum departamento, e falar na frente de trinta pessoas, das quais quinze pareciam querer nos matar. Não vão nos matar agora, então seguimos em frente. A essa altura havíamos deixado de operar com o nome do antigo grupo e usávamos o nosso próprio. Esbanjávamos uma camiseta com uma arte que compramos de uma artista não-binário que eu tinha no Facebook. Nos conheciam nas redondezas como as “pós-modernas”, mas não tínhamos tempo para essas bobagens. A agenda queer é lotada.

Na segunda-feira, andávamos com uma caixa muito feia de papelão, decorada com bandeiras, outros símbolos e alguns rostos, e íamos até as salas dos professores, exigindo que contribuíssem para a causa enfiando uma nota pelo buraquinho. Era nosso irônico caderno de ouro. Nós vimos seus carros caros no estacionamento, então coloquem logo o dinheiro. Quem mais vai colocar?

Na terça-feira, distribuíamos mesas de inscrições no meio dos espaços de convivência de cada prédio, e com projetores — também contrabandeados de departamentos — lançávamos slides com as informações de nossos simpósios nas paredes de tinta descascada. Dez ou quinze estudantes passavam a cada hora. 80% fazia uma análise silenciosa por alguns milésimos, identificava os signos da abjeção, e dava as costas sem falar nada. 10% chegava perto para fazer perguntas com a voz de quem provavelmente só queria fofocar mais tarde sobre “os viados” que estavam perto da cantina. Os últimos assinavam a ficha de inscrição.

Às quartas, tínhamos o nosso grupo de estudos: Butler, Foucault, Harraway, Wittig, Rubin. Começamos com os cânones do pós-feminismo, e até hoje sou grata por isso. Sempre aparecia alguém novo, e sempre voltávamos ao início desenhando gráficos da Matriz Heterossexual no quadro negro. Era um ritmo quase geológico e muito repetitivo, mas jamais negávamos uma introdução para quem por qualquer motivo caísse ali e precisasse de uma dose da Suspeita.

Na quinta, batíamos nas portas das salas de aula, pois sabíamos que seriam forçados a nos ouvir se o professor nos deixasse dar um recado. Normalmente o mesmo professor que permitia a entrada se arrependia de imediato assim que abríamos a boca. Explicávamos que éramos bichas e sapas transviadas, que o Crepúsculo da Heterossexualidade podia ser observado a olho nu e que chegara a hora do Comunismo Somático. Fazíamos isso elaborando, em dez minutos, do que se tratava o Q na sigla. Os homens das turmas nos olhavam com cara de merda, alguns recusavam os panfletos, e outros riam sem o esforço de disfarçar. As mulheres geralmente eram gentis: vocês têm tanta coragem! tenho um primo gay e acho muito importante falar sobre isso aqui. Eram mais raras as vezes em que nossos olhos encontravam rostos conhecidos. Alguns tinham a coragem de compartilhar o entusiasmo na cara de seus colegas de Medicina ou Direito (esses eram sempre os piores cursos…), nos ajudavam a explicar nosso ativismo, deixando claro um pertencimento a isso, e nos agradeciam.

Sexta-feira aconteciam os eventos. Convidávamos a parcela cada vez maior de docentes que nos apoiavam e que tinham alguma pesquisa que se relacionasse com nosso feminist work. Mas só para os eventos mais elaborados. Sem quase qualquer apoio financeiro, era muito comum que apenas jogássemos uma das bichas num auditório para fazer um freestyle do Queer 101. Sabíamos exatamente o que falar e como falar: sintetizar teoria crítica, tarefa muito responsável, era nosso café da manhã. Dois ou três membros do grupo, eu inclusa, podiam ensinar sobre a Revolução sem precisar de notas. Às vezes fazíamos festivais de curtas; às vezes fazíamos oficinas de performance.

No final de semana comemorávamos. Um professor muito gentil e grande amigo, que estava entre nós como igual, cedia a casa para confraternizações. Bebíamos e comíamos sem pagar nada. Já pagávamos com o nosso suor, e ele sabia bem disso. Essas festas nem sempre eram boas, mas quase ninguém deixava de ir. A realidade é que, sobrecarregadas, não éramos sempre amistosas e confortáveis umas com as outras. Mas todo mundo ali dormia sabendo que plantamos flores no Sertão, e que serão regadas por gerações, ainda que pisem em nossos jardins.

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