#5: sujeira e gênero II
Eu lembro de todos os detalhes deste dia como se fosse ontem — não é possível esquecer uma ferida de gênero. Aconteceu uns dois anos atrás, eu não tomava hormônios e os meus recursos para transicionar eram exclusivamente um conjunto de tecnologias semiótico-verbais. É engraçado pensar que a definição que dão para uma mudança de gênero é apenas a saturação de biocódigos cosméticos e plásticos, e portanto não é uma surpresa observar que nas narrativas comuns da transição, uma pessoa sai do armário como trans* quando começa a usar roupas do gênero “oposto” e/ou inicia um protocolo de hormonização… o primeiro batom, a primeira dose.
Para mim, a transição só muito recentemente teve a ver com modificar minha aparência. Todo o meu investimento nesse processo de desidentificação e inversão da masculinidade acontecia através da leitura, escrita, e fala. Sou trans há uns 5 anos e eu não me sinto mais ou menos trans agora quando hormonizada, usando uma saia e sendo tratada no feminino por desconhecidos. A aparência física, os ossos e a carne e tudo que vestimos por cima, são só o nível hipermaterial do corpo, que não termina na pele. Já me cansei de contar que transicionei quando li Gender Trouble pela primeira vez e não porque na minha infância eu vestia roupas da minha mãe — nunca fiz isso.
Imersa em minhas bolhas de Reddit, Twitter, Facebook, todas as redes sociais que existem, e andando com as pessoas menos transfóbicas de minha cidade, eu acreditava que poderia habitar o espaço urbano enquanto mulher e que só precisava de paciência e força de vontade. Tinha a esperança de poder educar todo mundo sobre a minha contra-identidade, que se eu falasse que sou uma garota e mostrasse o quanto penso sobre isso e sobre como acredito praticar a feminilidade, eu até poderia sofrer com a ignorância alheia mas que eventualmente não seria mais questionada. Sendo lésbica e ainda mais futch naquela época (calça e jaqueta de couro = uniforme), e pouco disfórica com meu corpo, essa esperança atendia ao meu interesse de não querer mudar minha aparência “para agradar os outros”, como eu dizia. Eu estava enganada e agora conto como aprendi essa lição da pior forma.
Era uma “rave” de heterossexuais bregas que escutam o EDM mais genérico possível (a heterossexualidade é, antes de tudo, muito cafona). Fui com umas três amizades, o espaço era um tipo de chácara, não estava muito lotado. O banheiro feminino era um cômodo da casa e de uso individual; as mulheres faziam fila na porta. Limpo, iluminado. O masculino era a coisa mais asquerosa do mundo: um mictório no fundo da chácara, com uma porta sem fechadura e literais fezes no chão. Os homens se aglomeravam no escuro e sem respeitar qualquer privacidade, e eu jamais pretendia pisar ali.
Após uma hora na festa decidi que ia usar o banheiro. Eu quase não me atrevia a usar um feminino, não era tão ingênua assim, mas estava convicta de que eu precisava me impor, dar um próximo passo. Era o meu direito, afinal. Fiquei alguns minutos na fila de cisgêneras. Ouvi uns três ou quatro esse aqui é o banheiro feminino, moço. Tentei não vomitar na cara delas… (quem essas vaginistas acham que são? São tão falsas quanto eu…). Fiz que sim com a cabeça e me afastei, esperando que a fila se esvaziasse. Depois que não tinha mais ninguém por perto concluí que não se dariam ao trabalho de me incomodar num banheiro vazio, independente da placa colada em cima. Certo?
Mãos enormes me agarraram pelo pescoço e me puxaram para trás. Demorei para entender o que estava acontecendo, incapaz de processar aquilo, e de um jeito quase cômico apenas tentei entrar de novo no banheiro, ignorando a realidade. Fui lançada para fora. Um verme imenso, barbudo, e com todos os outros signos mais caricatos do machão ordenava que eu saísse porque estava no banheiro errado.
— Cara, eu simplesmente quero mijar, sou transgênero.
— Cai fora!
— Não tem nenhuma menina na fila, você não precisa fazer isso. Eu sou trans, você não sabe o que significa isso?
— Ah é? Então me mostra seus documentos. Cadê seu documento? Tira aí.
— Eu não tenho documentos! Mas isso não tem nada a ver! Você tá sendo opressivo, você não pode fazer isso com as pessoas!
— Vai cheirar pó em outro banheiro, seu viado de merda!
O “diálogo”, entre mil aspas, aconteceu enquanto eu reunia toda a coragem do mundo para tentar sustentar a minha transfeminilidade extremamente precária, e ele quase me batia. Com o policial do gênero e fiscal sanitário a comunicação não acontece com palavras. Eu não estava mais no Twitter — não bastava informar meus pronomes. Sem hormônios, sem batom, e sem documentos, eu era um viadinho de merda e nada mais que isso. O que ele me informava, em sua língua de ogro desgraçado, era que eu não estava equipada com nenhuma prótese da fábrica da feminilidade hegemônica. Após uma inspeção visual tinha a certeza que eu não era uma mulher. Duvido muito que ainda que tivesse os “documentos” (próteses técnico-administrativas) isso faria alguma diferença, mas o fato é que tampouco tinha o meu passaporte. Viadinho de merda, delinquente sexual invadindo o espaço das moças. Sem próteses, sem esperança: eu só era uma garota na minha própria cabeça.
Dei as costas, humilhada e prestes a chorar, e fui em linha reta marchando ao outro banheiro. Entrei no lugar imundo que, é claro, não tinha espelho, mas imaginei que estava encarando eu mesma enquanto fitava a parede. Respirei fundo o odor de urina e bosta de macho. Me lembrei imediatamente de Sujeira e Gênero. Me tranquilizei, era como se Paul estivesse ali dentro comigo. Fugi sem mijar, e sem chorar. Nenhum fluido saiu do meu corpo. Encontrei uma árvore qualquer e ela foi o meu banheiro — o único que não me exigia um gênero.
Não vamos aos banheiros para evacuar, senão para fazer nossas necessidades de gênero. Não vamos mijar, senão reafirmar os códigos da masculinidade e da feminilidade no espaço público.