#7: o futuro já está aqui
Já faz um tempo que não escrevo. O ano começou, e com ele todas as dificuldades que eu imaginei que deixariam meu corpo pesado, às vezes quase inabitável, estão aqui. Estou bem com estradiol, mas passamos por nossa primeira crise há poucas semanas. Por quase todo esse tempo em que estivemos juntas, eu sempre agarrava a caixa de comprimidos ao fim do dia com muita paixão e expectativa: sabia que terminando de engolir e me deitando, ela trabalharia comigo e eu acordaria brilhante. Até que eu comecei a questionar os efeitos, pensei que minha imagem estivesse fragmentada no espelho, e de um jeito muito injusto dei de culpá-la. Passei a pegar os comprimidos insatisfeita, quase como alguém que recebe um presente terrível de natal e precisa fingir que quer aquilo. Passei a ter raiva, projetar minhas inseguranças em quem só queria me fazer o bem.
Algum tempo depois, coloquei a cabeça para fora das águas gélidas, respirei fundo, e ficou tudo bem mesmo. Logo em seguida eu saio de uma farmácia com um tubo de oestrogel, a estradiol 2. Essa é a sua nova forma. Ela parece muito contente, talvez estivesse tão sufocada quanto eu, e agora nós estamos apaixonadas mais uma vez. Eu a esfrego em minha barriga todas as noites, fazendo movimentos circulares para que atravesse a minha pele. Gosto de brincar que é como se estivesse fazendo carinho num feto. Meu abdômen fica avermelhado depois com todo o atrito e serve como um lembrete de que mais alguém está aqui no nível mais físico e visível que se pode desejar. Fique aí, eu não vou nos decepcionar.
Uma dessas dificuldades que vieram com o novo ano se trata desse potencial e previsível pesadelo que será executar um estágio supervisionado, a regência da disciplina de História, em uma escola que supostamente deve me aceitar. Eu nem pisei ainda no ambiente que, lotado de crianças, deveria ser um lugar acolhedor e feliz. Mas é claro que agora eu só consigo visualizar as paredes de uma instituição disciplinar que tentou obliterar aquilo que sou hoje — e que dessa vez talvez consiga.
Cada segundo nas minhas aulas de estágio no campus funciona como um verdadeiro terrorismo para mim. A professora fala sobre o cronograma, todos os documentos que serão necessários, e o que deverá ser feito; os protocolos do estágio e como dar início. Não existem protocolos pra mim, entretanto. Tudo que ela diz poderia entrar por uma orelha cisgênera e sair pela outra, deixando só uma preocupação de como conseguir efetivamente dar aulas, ensinar, lidar com alunes e com os conteúdos da disciplina. Para mim, porém, se trata de uma faixa extremamente agressiva tocada no último volume e com guturais de um vocalista que anuncia minha falha e meu sofrimento. Um brutal e insuportável grindcore heterossexual. Não existem protocolos pra mim… Talvez eu consiga então um conselho?
A quem pedir um conselho? Eu olho ao meu redor, fitando todas as pessoas da turma, e percebo que ninguém vai passar por isso. Logo em seguida me lembro que estou nessa universidade há mais tempo que o previsto e que conheço todas as pessoas que frequentaram esse curso nos últimos anos — percebo que, se uma travesti esteve por esses corredores e conseguiu terminar um estágio, ela fez isso de dentro do armário. Eu provavelmente teria sabido.
Antes que eu chegasse a colocar a pergunta em meus lábios, uma espécie de pedido de socorro sobre como eu poderia lidar com isso, eu fatalmente em vez disso chego à conclusão de que estou desejando um conselho nunca antes dado. Ninguém poderá me ajudar.
Bom, não há nada de novo aqui, mas está sendo estranhamente confortável me dar conta mais uma vez de que a transexualidade é para muitas, acima de tudo, uma tecnologia de criação da nova realidade. A possibilidade de inventar aquilo que nunca existiu. Construir um novo mundo a partir das ruínas do velho. É isso que mais me interessa neste projeto que aqui escrevo. Agora visto minha saia, determinada de que não irei fingir ser um homem, seco minhas lágrimas e penso…
Quando eu terminar tudo isso, quando eu estiver velha e cansada, na minha vez de ser professora e ainda nessa jornada, talvez uma dessas adolescentes que conhecerei em breve estará passando pelo mesmo pesadelo. Ela terá crescido, entrado num curso de licenciatura, na minha sala de aula, e essas ruínas que agora tento criar ainda serão edifícios imponentes que geram uma paisagem claustrofóbica para queers. Mas então eu seguraria suas mãozinhas, que estariam trêmulas, acariciaria seu rosto com todo o amor de uma mãe e diria: venha, criança, vai ficar tudo bem. O futuro já está aqui.
