#9: you can drink your own blood, I’ll never kill myself

technogender
2 min readOct 14, 2023

A ideia para este texto surgiu de raiva, descrença, desespero. O projeto: fazer um relatório de quantas vezes eu sofreria formas explícitas de transfobia ao longo de uma semana. Diante de uma frequência diária e intankável de assédio, desrespeito, ódio, eu achei que seria interessante quantificar isso — quantas vezes por dia tenho que tolerar essa merda.

Bom, a semana começou me providenciando bastante conteúdo para uma análise empírica de tais situações. Na segunda feira, fui ao trabalho de calça e cropped; debaixo do ar condicionado, senti frio e pedi minha amiga azia seu agasalho emprestado. Agora eu estava toda de preto e roupas pesadas, me sentia confiante, desse jeito contraditório e incrível, uma espécie de masculinidade feminina invertida. Minha colega de equipe me abordou e disse que eu estava "parecendo um homem". Conclusão provisória: eu devo às pessoas cis uma constante apresentação de gênero estritamente feminina, com códigos hegemônicos do que define uma mulher.

Na terça feira, estou de short que uso como pijama e uma regata. Espero um hambúrguer ficar pronto na lanchonete da esquina de minha casa. Um cara numa moto passa do meu lado e me chama de viado. Conclusão provisória: minha apresentação de gênero é definitivamente queer e incomoda a mente hetero.

Um dia depois, estou à caminho do banheiro feminino e público com azia. Nós avistamos um grupo de homens cishet parados na porta. Ela diz que ficará vigiando pois sabe tão bem quanto eu que um bando de macho nunca é um bom sinal. Eu entro sem problemas, faço o que tenho que fazer e saio. Ela me conta que eles ficaram olhando e pareciam prontos pra falar alguma coisa, mas ela os encarou com um semblante furioso e intimidante. Eu a adoro. Conclusão provisória: amizades queer me protegem e podemos sobreviver juntas dentro da cisnorma.

Véspera do feriado. Eu saio do trabalho e estou indo numa farmácia comprar minha dose quinzenal de hormônios. Na fila do caixa eu encontro um conhecido trans, ele também está comprando seus hormônios. Temos uma conversa muito agradável e lembro de me sentir feliz por ele, por mim, por nós. Logo em seguida, saio da farmácia e uma bicha me para na rua para me pedir uns trocados. Ela primeiro me chama de "amiga" e, quando me aproximo, parece ficar confusa. Ela se atrapalha com os pronomes e determina: vou te chamar de amiga mesmo, pois você é como eu.

Isso começou como um relatório de quantas vezes por semana fui invalidada, ferida, e quis me matar. Termino agora enxergando as coisas por outro lado, prestando atenção às sombras, e percebo que eu fracassei em manter um gênero inteligível e doeu bastante, mas eu nunca me senti tão válida. Conclusão definitiva: you can drink your own blood, I’ll never kill myself.

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