Anarquia Pós-Anarquista

technogender
5 min readJan 11, 2023

Tradução minha de Post-Anarchism Anarchy, Hakim Bey. Extraído de ROUSELLE, Duane; EVREN, Süreyyya (Orgs.). Post anarchism: a reader. Londres: Pluto Press, 2011.

A Associação pelo Anarquismo Ontológico se reúne em conclave, com turbantes negros e mantos cintilantes, esparramados em tapetes shirazi bebendo café amargo, fumando chibouk e sibsi. PERGUNTA: Qual é a nossa posição sobre as recentes defecções e deserções do anarquismo (especialmente na terra da Califórnia): condenar ou aceitar? Expurgá-los ou saudá-los como vanguardistas? Elite gnóstica ou traidores?

Na verdade, nós temos muita simpatia pelos desertores e suas várias críticas ao anarquISMO. Como Simbad e o Velho Terrível, o anarquismo cambaleia ao redor do cadáver de um Mártir preso por magia aos seus ombros — assombrado pelo legado da falha e o masoquismo revolucionário — remanso estagnado da história perdida.

Entre Passado trágico e Futuro impossível, o anarquismo parece carecer de um presente — como se estivesse assustado de perguntar a si mesmo, aqui e agora, QUAIS SÃO MEUS VERDADEIROS DESEJOS? — e o que eu posso fazer antes que seja tarde de mais? … Sim, imagine que você está sendo confrontado por um feiticeiro que lhe encara com malícia e exige, “Qual é seu Verdadeiro Desejo?” Você ficaria indeciso, gaguejando, buscaria o refúgio da platitude ideológica? Você possui Imaginação e Vontade, é capaz de sonhar e ousar — ou você é feito de trouxa por uma fantasia impotente?

Se olhe no espelho e tente (pois uma de suas máscaras é a face de um feiticeiro)…

O “movimento” anarquista hoje virtualmente não possui negros, hispânicos, nativos norte-americanos ou crianças… ainda que em teoria tais grupos genuinamente oprimidos são os que mais tem a ganhar com qualquer revolta anti-autoritária. Será que o anarquismo não oferece nenhum programa concreto pelo qual aqueles que realmente precisam possam satisfazer (ou pelo menos lutar realisticamente para satisfazer) suas necessidades e desejos reais?

Se esse é o caso, tal fracasso explicaria não apenas a falta de apelo do anarquismo aos pobres e marginalizados, mas também o desafeto e as deserções que acontecem em seu núcleo. Manifestações, piquetes e reimpressões de clássicos do século XIX não contribuem para uma crucial e corajosa conspiração de auto-libertação. Se é para o movimento crescer em vez de diminuir, muita madeira morta terá que ser descartada e ideias arriscadas serem aceitas.

O potencial existe. A qualquer momento, um grande número de americanos irá perceber que estão sendo forçados a engolir um monte de bosta reacionária, histérica, entediante e de gosto artificial. Longos corais de grunhidos, golfadas, vômitos… Multidões enfurecidas invadindo shoppings, quebrando e roubando… etc, etc. A Bandeira Negra poderia fornecer um foco para a fúria e canalizá-la para uma insurreição da Imaginação. Nós poderíamos retomar a luta quando ela parou no Situacionismo de 68 e Autonomia nos anos setenta e levá-la para o próximo nível. Nós podemos rebelar em nosso tempo — e no processo, nós poderíamos perceber nossos Verdadeiros Desejos, mesmo que apenas por uma temporada, uma breve Utopia Pirata, uma zona livre de distorção no velho continuum do Espaço/Tempo.

Se a Associação pelo Anarquismo Ontológico mantém sua filiação com o “movimento”, não o fazemos meramente por uma predileção romântica por causas perdidas — ou não totalmente. De todos os “sistemas políticos”, o anarquismo (apesar de suas falhas, e precisamente porque não é nem político nem um sistema) é o que mais se aproxima de nossa compreensão da realidade, ontologia, a natureza do ser. Quanto aos desertores…concordamos com suas críticas, mas note que elas parecem não oferecer novas alternativas poderosas. Então, por enquanto, preferimos nos concentrar em mudar o anarquismo por dentro.

Aqui está o nosso programa, camaradas:

  1. Trabalhar para a compreensão de que o racismo psíquico substituiu a descriminação explícita como um dos aspectos mais nojentos de nossa sociedade. Imaginação participativa em outras culturas, especialmente aquelas com as quais vivemos.
  2. Abandonar toda a pureza ideológica. Abraçar o anarquismo Type-3 (usando o slogan temporário de Bob Black): nem coletivista e nem individualista. Limpe o templo dos vãos ídolos, se livre do Velho Terrível, das relíquias e da martirologia.
  3. O movimento Antitrabalho ou “Zerowork” é extremamente importante, incluindo um ataque radical e talvez violento à Educação e à servidão infantil.
  4. Desenvolver redes de samizdat americanas, substituir as táticas datadas de publicação/propaganda. A pornografia e entretenimento popular como veículos de re-educação radical.
  5. Na música a hegemonia do ritmo 2/2 e 4/4 precisa ser derrubada. Nós precisamos de uma nova música, totalmente insana mas cheia de vida, de ritmo sutil mas poderoso, e precisamos disso AGORA.
  6. O anarquismo precisa se afastar do materialismo evangélico e do cientificismo banal e limitado do século XIX. “Estados superiores da consciência” não são meros FANTASMAS inventados por sacerdotes malignos. As culturas orientais, ocultas, tribais possuem técnicas que podem ser apropriadas de um jeito verdadeiramente anarquista. Sem “estados superiores da consciência”, o anarquismo acaba e se esgota numa forma de miséria, uma queixa lamentável. Nós precisamos de um tipo prático de “anarquismo místico”, livre de toda a baboseira New Age, e inexoravelmente herético e anti-clerical; ávido por todas novas tecnologias de consciência e metanoia — uma democratização do xamanismo, intoxicado e sereno.
  7. A sexualidade está sob ataque, obviamente pela Direita, de forma menos clara pelo movimento pseudo vanguardista “pós-sexual”, e de forma ainda menos clara pela Recuperação Espetacular da mídia e publicidade. Está na hora de dar um grande passo à frente nas políticas sexuais, uma explosão na reafirmação do eros polimórfico — (inclusive e especialmente diante da peste e melancolia) — uma glorificação literal dos sentidos, uma doutrina do prazer. Abandone todo o ódio mundano e a vergonha.
  8. Experimentar com novas práticas para substituir o inventário datado da Esquerda. Enfatizar os benefícios práticos, materiais e pessoais da comunicação radical. Os tempos não parecem propícios para a violência ou militância, mas com certeza um pouco de sabotagem e perturbação criativa nunca são inoportunas. Trame e conspire, não reclame e resmungue. O Mundo da Arte em particular precisa de uma dose de “Terrorismo Poético”.
  9. A desespacialização da sociedade pós-industrial oferece alguns benefícios (e.g. a rede de computadores) mas também pode se manifestar como uma forma de opressão (a perda de moradias, gentrificação, despersonalização da arquitetura, o apagamento da Natureza, etc). As comunas dos anos 60 tentaram contornar essas forças mas falharam. A questão da Terra se recusa a ir embora. Como podemos separar o conceito de espaço dos mecanismos de controle? Os gângsters do território, os Estados/Nações, monopolizaram todo o mapa. Quem pode inventar para nós uma cartografia da autonomia, quem pode desenhar um mapa que inclua nossos desejos?

O AnarquISMO implica, em última instância, anarquia — e anarquia é caos. Caos é o princípio da criação contínua… e o Caos nunca morreu.

—Sessão plenária da Associação pelo Anarquismo Ontológico
Março de 1987, Nova Iorque.

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