eu sou um arquivo

technogender
3 min readOct 5, 2022

Isto é um fracasso tudo que estou provocando é minha própria desintegração. O que estou tentando fazer? Minha obra e minha sexualidade se misturam: aqui a sexualidade completa ocorre no interior da escrita, não é expressa por ela.

Durante uma aula de estágio meus colegas conversam sobre as diferenças entre o regime de educação à distância e as atuais aulas presenciais. Dizem que nunca vai ser a mesma coisa e que a internet não é capaz de substituir a presença física. Lembro de pensar que eles enxergam as coisas embaralhadas: nossa presença digital não deve ser interpretada como uma tentativa de simular a realidade, mas sim vista como outra realidade inteiramente diferente. Seu avatar não é a pessoa que compra pães no mercado; seu perfil no Instagram é um outro indivíduo. Os emojis de beringela não representam um pênis. Mas no meu caso (e de muitas outras) é bem difícil distinguir a pessoa online da offline, technogender de Alexis. Sei que sim, todo sujeito do capitalismo farmacopornográfico é sempre online, mas eu acho que uma diferença se manifesta quando você reconhece a internet como um lar e desenvolve uma relação afetiva e consciente com essa prótese — a mais importante delas.

Nada pode parar minha escrita finalmente estou sozinha uso minha escrita para me livrar de todos os sentimentos de minha identidade que não sejam minha sexualidade. Só preciso existir quando alguém tenta me tocar ou quando me toco. Foda-se.

O que quero com este projeto? Ainda faz sentido escrever?

Primeiramente, eu me esforcei a fazer uma sugestão de que a transgeneridade (que aqui é sinônimo de queer ou punk) se trata de uma contratecnologia de produção da consciência e de fabricação de novos corpos, e que ela pode e deve ser aprendida e ensinada coletivamente. Podemos nomear temporariamente esse movimento como aquilo que é oposto ao gatekeeping — gateopening. Abrir os portões da transgeneridade significa também responder ao beco sem saídas que é o embate entre o transmedicalismo e o mogaismo. Não existem parâmetros capazes de definir quem vive ou não a transgeneridade: essa não é uma categoria que descreve coisa alguma. Por outro lado, a transgeneridade precisa com urgência ser reconhecida como prática política capaz de terraformar os planetas: não é sobre simplesmente colocar pronomes na bio.

Em segundo lugar, quis identificar que um biocódigo de gênero hoje é um meme e não a crinolina vitoriana. O meu gênero é composto por memes: páginas de transfemmes como hyperreal_pill, cruel______moons ou tape.wyrm são máquinas de projeção da alma. Esse movimento tem a ver com um exercício maior de atualizar a teoria feminista queer: reconhecer que agora o hyperpop é o mesmo tipo de espaço de resistência ao sistema heterocentrado no âmbito da música como foi o Riot grrrl. Um exemplo de tal atualização pode ser encontrado na obra mais recente de McKenzie Wark — ela gentilmente me enviou um PDF de Reverse Cowgirl.

Meu maldito sexo é impessoal. Minha sexualidade é impessoal. Estou perdendo rapidamente a minha identidade, a última parte do meu tédio.

Por último e mais importante, estive constantemente preocupada em explorar a noção de corpo como arquivo, como somateca. Fiquei surpresa quando finalmente tive a oportunidade de ler Kathy Acker em português e me dei conta de que está tudo ali. Preciado e Despentes são nada mais que stans, pensei. Acker é e não é Tarântula Negra; Tarântula Negra por sua vez é e não é o monte de figuras históricas cujas biografias são reapropriadas por ela. Várias pessoas — fictícias ou não, e que foram produzidas pelas fontes que são indicadas ao fim de cada capítulo — constituem o corpo da protagonista. Todas são genderfuckers, criminosas e desgraçadas abandonadas por todos. Tarântula Negra é uma somateca, e agora é também parte de mim. Eu sou uma somateca. Eu sou um arquivo.

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