um modesto roteiro de estudos: introdução à teoria queer

technogender
5 min readJan 11, 2023

Qualquer introdução boa à teoria queer lhe dirá que “queer” sempre resiste aos processos de definição e formalização — ainda que constantemente sofra essas tentativas. É preciso também dizer desde o começo que “queer” é tanto uma teoria quanto um movimento social quanto uma atitude, ou contrateconologia de produção da consciência (se formos adentrar nesta gramática política). A palavra em si é marcada por particularidades geográficas, temporais e políticas, que pouco fazem sentido no Sul global. Para nós, falantes do português brasileiro, ela seria uma injúria equivalente a falar traveco-viado-puta-drogado ao mesmo tempo, o que às vezes é traduzido como transviade na literatura brasileira.

O que torna essa palavra tão especial é o processo performativo de inversão que ela representa: os viados, as putas, as travestis, as sapatonas e os delinquentes sexuais agora se orgulham de seu nome, queimam os protocolos médicos e cagam na porta da casa da família tradicional ou do casal de gays sigilosos.

“Queer” é portanto uma crítica, um processo, uma experimentação política de cunho anti-assimilacionista, anti-essencialista e anti-tudo-que-é-o-Normal. Pode se manifestar em todo e qualquer lugar, e hoje no Brasil é encontrado nas performances pós-pornográficas de Bruna Kury e muitas vezes sendo apenas outra forma de dizer transfeminismo.

Como eu dizia, “queer” também serve para nomear o que se entende como uma “teoria”. Mas é necessário ressaltar que existem na verdade múltiplas teorias, caminhos e genealogias de toda a literatura que hoje pode se encontrar debaixo de uma lente queer. O roteiro não pretende se disfarçar de uma introdução “oficial”, nem a única e nem a melhor. Os itens (livros, ensaios, etc) contidos aqui representam apenas aquilo que existe de mais canônico e suas torções no contexto nacional. É sobre um tipo peculiar de teoria feminista (pós-feminista). Essa teoria queer surge do choque entre a French Theory de autores como Michel Foucault e Jacques Derrida com o feminismo que estava em crise, sendo confrontado pelas teóricas e ativistas lésbicas, decoloniais, intersexuais e trans: as perspectivas censuradas durante a Segunda Onda.

Esse feminismo foi também herdeiro da fúria das pessoas marginalizadas durante a crise da AIDS nos Estados Unidos. David Halperin conta que os ativistas do grupo Act-Up, paradigmático para o movimento queer, tinham como livro de cabeceira o primeiro volume da História da Sexualidade. As explosões que aconteciam nas ruas eram o outro lado da moeda da crise epistemológica sendo debatida nas academias norte-americanas. Foi assim que Judith Butler, Michel Foucault, Act-up e a AIDS se tornaram parte da história canônica de Queer que começa no início dos anos 1990.

Outras genealogias igualmente importantes poderiam ser feitas. Há quem apresente o advento do Queercore como o início de tudo, atribuindo às bandas punk rock de viados e caminhoneiras e às zines de Bruce LaBruce a mesma importância que tudo listado acima. Existe também a história do coletivo Front homosexuel d’action revolutionnaire (FHAR) na França, que para Paul B. Preciado foi a primeira manifestação de um terrorismo anal, uma espécie de proto-queer. Da mesma forma, seria possível seguir os rastros do anarquismo e identificar como a teoria-práxis sempre esteve associada a uma crítica do sistema heterocentrado, partindo de Adolph Brand e do Institut für Sexualwissenschaft, passando por Emma Goldman em Marriage and Love e suas cartas, Daniel Guérin e chegando ao Bash Back.

Assim, muitas são as origens e as formas de Queer. O roteiro acredita que começar com o canônico pode ser útil e que não impede ninguém de conhecer Jota Mombaça e suas potentes críticas à teoria queer brasileira, que é filha da academia cisgênera e branca. Começar com os cânones nos possibilita estranhar tudo mais uma vez e assim reinventar a teoria. Os itens do roteiro são em geral produções brasileiras da elite queer, e pouco têm a ver com a imagem de uma travesti segurando um coquetel molotov. São introduções bastante protocolares e disponíveis em nosso idioma, com uma exceção. Ainda assim, eu espero que ajude quem lê a ter uma noção sólida dos entendimentos comuns de queer, e que depois invente seu próprio caminho.

#1 TEORIA QUEER: UMA POLÍTICA PÓS-IDENTITÁRIA PARA A EDUCAÇÃO

Este texto de Guacira Lopes Louro publicado em 2001 é tido como o marco de introdução da teoria queer na academia brasileira. Embora uma resenha de Problemas de Gênero assinada por Karla Bessa tenha surgido nos cadernos pagu em 1995, o artigo de Louro foi um esforço mais explícito e elaborado de diálogo e tradução das formulações feministas normalmente identificadas hoje como “teoria queer”. O texto viria mais tarde a constituir o livro de Louro Um Corpo Estranho ao lado de ensaios de sua autoria, e permanece até hoje sendo a porta de entrada para a literatura queer nacional. Um outro livro recomendado é O Corpo Educado, publicado em 2000 e organizado por Louro — contando com um ensaio bastante foucaultiano da autora e a tradução do primeiro capítulo de Bodies That Matter de Judith Butler, é estranho que esse livro não seja estabelecido como um marco anterior ao artigo aqui apresentado.

#2 ORIGENS HISTÓRICAS DA TEORIA QUEER

A criação do dossiê Sexualidades Disparatadas apresentado por Richard Miskolci em 2007 é considerada a “formalização” da teoria queer brasileira anunciada por Guacira Lopes Louro. Aqui compreendida como um campo de pesquisa interseccional das humanidades, essa teoria queer nacional foi movimentada por nomes que se aglomeraram em torno do núcleo de pesquisa Quereres coordenado por Miskolci: Berenice Bento, Thiago Duque, Pedro Paulo Gomes Pereira, Larissa Pelúcio, etc. O livro de Miskolci Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças (2012) é um bom ponto de partida, e o segundo item da lista, Origens históricas da Teoria Queer, se trata do primeiro capítulo.

#3 FOUCAULT E A TEORIA QUEER

Como já dito na apresentação do roteiro, Michel Foucault é definitivamente o autor incontornável quando se pensa em “teoria queer”, sendo quase onipresente na literatura assim como Judith Butler, influenciada por ele. O livro de Tamsin Spargo, Foucault e a teoria queer (1999), pode servir para esclarecer as abordagens da sexualidade e do poder propostas pelo filósofo francês. A edição selecionada é uma tradução que é acompanhada pelo texto Ágape e êxtase e um posfácio de Miskolci. É um bem-vindo bônus o pequeno glossário de conceitos foucaultianos elaborados por Spargo.

#4 DOSSIÊ TEORIA QUEER (REVISTA FLORESTAN)

Os nomes da teoria queer brasileira aqui mencionados se reúnem de forma muito conveniente neste dossiê publicado em 2014, o número 2 da revista Florestan da UFSCar. Os ensaios que compõem o dossiê se complementam bem e servem para aprofundar as discussões introduzidas pelos itens anteriores. Confira a lista:

  • Dossiê Teoria Queer: problematizando identidades e diferenças (Thiago Mazucato)
  • Estranhando as Ciências Sociais: Notas Introdutórias Sobre Teoria Queer (Richard Miskolci)
  • Breve História Afetiva de uma Teoria Deslocada (Larissa Pelúcio)
  • O que pode uma Teoria? Estudos Transviados E A Despatologização Das Identidades Trans (Berenice Bento)
  • Corpo, Estado E Militância, Ou Sobre Aquilo Que Você Precisa Saber Antes De Começar A Ler Uma Puta Teoria (Tiago Duque)
  • Seria Carmen Miranda uma drag queen (Fernando Balieiro)

#5 QUEER: A GRAPHIC HISTORY

O último item da lista é a mais simples e ainda não-traduzida das introduções à teoria queer que conheço. O livro de 2016 é construído com textos de Meg-John Barker e adoráveis ilustrações de Julia Scheele. Antes de entrar totalmente na noção de “teoria queer”, o livro passa por precursores do ativismo e teoria, como o movimento de Civil Rights nos EUA ou os primeiros estudos contemporâneos de sexologia em Alfred Kinsey. São propostas sínteses de conceitos de filósofos pós-estrutralistas que influenciam a literatura queer, assim como das contribuições de feministas decoloniais. A Graphic History literalmente desenha a teoria queer e conquista o lugar da introdução mais didática possível.

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